A Conferência Episcopal decidiu criar um fundo para compensações financeiras que contará com o contributo de todas as dioceses e anuncia uma comissão de avaliação que vai ser responsável pelo determinar dos montantes dessas compensações. Parece-lhe o melhor método ou esperava desde já a definição de um valor?
Parece-me o melhor método, sem dúvida, porque se houvesse mais critérios já definidos, havia como que um vínculo, havia uma falta de independência. E parece-me que esta comissão a ser criada terá de agir com seriedade, que é aquilo que se pede, e também com total independência.
Evitando assimetrias…
Exatamente. A questão que foi divulgada de haver um prazo para se apresentarem os pedidos de indemnização terá sempre de se considerar, exatamente para evitar que se esgotem fundos com os primeiros e depois não cheguem a todos. Tem de haver aqui seriedade, rigor, justiça, como é óbvio, e muito respeito na análise de cada processo.
E se existirem casos de abuso ou denúncias que cheguem depois de dezembro de 2024?
Isso terá de ser averiguado mais tarde, porque neste momento é isto que está previsto e que já foi divulgado. Já há alguns pedidos formulados… Também não vos sei dizer se esses pedidos que já foram apresentados serão validados ou terão que ser repetidos, isso são tudo questões práticas que serão agora apuradas, daqui para a frente. Temos até junho para determinar e acertar estas questões.
Foi dito que a Comissão vai ser, entretanto, criada, foi dito o prazo, entre junho e dezembro de 2024, e foi dito também que o fundo é constituído pela Conferência Episcopal Portuguesa, solidariamente com todas as dioceses. A gestão deste fundo caberá depois autonomamente a esta Comissão?
Eu não me quero vincular aqui nessa matéria, porque isso ainda não foi decidido, ainda não foi discutido. Eu desconheço neste momento, tão prematuro, porque isto é uma decisão recente, desconheço se esse fundo vai ser gerido pela Comissão, se vai ser gerido pela Conferência Episcopal.
Ou seja, a Comissão terá, digo eu, de criar critérios, parâmetros, como que balizas, para poder chegar a um determinado montante. Mas penso, sem querer vincular nesta resposta, que o pagamento caberá à Conferência Episcopal.
Como é que enquadra este tema em todo o processo de ajuda a quem foi vítima de abuso?
Eu considero que hoje, melhor esta semana, deu-se um passo gigante. Parece conter pouco o comunicado [final da Assembleia Plenária da CEP] no que toca à reparação das vítimas de abusos sexuais. Mas, neste pouco que parece conter, entendo que traz muito, porque nos traz a independência em que todos nós queremos agir. Por isso, considero que hoje se deu um passo significativo na História da Igreja no sentido da reparação, que não é total, como é óbvio, porque as dores estão muito enraizadas, os danos causados em muitas situações são avultadíssimos. Mas sim, deu-se um passo gigante no reconhecimento deste flagelo.
Desde que iniciou trabalhos, o Grupo Vita já recebeu 86 denúncias. É um número muito diferente do que está dado pelas comissões diocesanas?
É, porque nem todas as denúncias se reportam às comissões diocesanas. Os institutos estão separados. A nível de denúncias que dizem respeito às comissões diocesanas serão cerca de 30. Não quero entrar em detalhes porque podemos estar uma semana sem receber nenhuma denúncia e depois, num dia, recebem-se três denúncias. Mas serão cerca de 30.
Esta diferença nos números é indicativa da persistente desconfiança das vítimas nas comissões diocesanas e na Coordenação Nacional?
Não vejo dessa forma. Vejo que há uma grande divulgação da atividade do Grupo Vita. O Grupo Vita surge, e bem, como um local, como uma instituição onde a vítima se pode dirigir. E não há uma divulgação das comissões diocesanas, mas trabalhamos todos para o mesmo…
Não considero isso, porque antes de surgir o Grupo Vita, as vítimas dirigiam-se às comissões diocesanas. E sei porque, num encontro com uma vítima, foi dito pela senhora que pensava que a queixa tinha de se dirigir ao Grupo Vita.
Não acho de todo, não considero de todo que seja relevante onde é que a vítima se dirige. O que importa é que a vítima sinta a confiança.
O que sublinhava era mais a possibilidade de haver desconfiança por serem organismos da própria Igreja.
O Grupo Vita foi criado pela Igreja. Que haja desconfiança de alguns, acredito que sim, e acho, depois de tanto dano sofrido, que isso encontre alguma justificação na dor da pessoa que sofre, que padece… Parece-me compreensível.
Mas como acha que se poderia superar ainda essa desconfiança? Ou então como criar mais proximidade, mais confiança entre as comissões diocesanas e as vítimas, ou quem pode, eventualmente, denunciar casos de abuso, sobretudo pela capilaridade que têm estas comissões diocesanas nas várias regiões do país?
Um primeiro passo, e simples, era haver mais divulgação. As comissões diocesanas nunca são referidas pelos órgãos de comunicação social e têm total independência.
Eu estou no cargo de Coordenadora Nacional há relativamente pouco tempo, mas já tive oportunidade de contactar todas as comissões diocesanas, de perceber, claro de uma forma ainda não muito profunda, mas também me foi explicado por quem me passou o cargo, pela doutora Paula Margarido, que todos nós estamos preparados e trabalhamos com afinco nesta matéria de acolher, de acompanhar. E há esta queixa que é: nós não temos divulgação. Dizer isso é mau? Só é mau no ponto de vista em que, se o Grupo Vita cessar funções, a quem se vão dirigir as vítimas?
E essa pode ser a perspetiva a médio prazo?
Eu penso que sim, porque foi esse o princípio quando surgiu o Grupo Vita. Se essa decisão de haver um limite temporal é vinculativo, desconheço. Mas sim, era o que estava previsto, era ter um limite temporal.
Estamos aqui na Renascença e na Ecclesia a divulgar também as comissões diocesanas e a Coordenação Nacional, precisamente também com esse objetivo.
– Agradeço, em nome das comissões diocesanas!
A divulgação dos casos em investigação, nas várias dioceses, tem acontecido a partir de critérios diferentes e, na última reunião nacional com as várias comissões, foi dito que seriam divulgados duas vezes por ano a partir da uniformização de critérios. Como é que está esse processo?
Estamos a reunir os números. A equipa de Coordenação Nacional irá dentro de pouquíssimo tempo divulgar os números que tem referente a vários períodos, desde 2019, altura em que surgiram as primeiras comissões, até à Comissão Independente, depois da Comissão Independente e depois o período pós Grupo Vita. E serão divulgados pela equipa de Coordenação Nacional.
Na sua opinião, persistem atitudes ou uma cultura de encobrimento destes casos de abuso?
Eu não vou dizer que não exista, mas do contacto que tenho tido, não tenho constatado que isso ainda continua a existir. Eu estou mais próxima, como é óbvio, da Comissão Diocesana de Braga, da qual também sou coordenadora, e isso de todo não acontece, não há encobrimento, há trabalho. Claro que, após uma denuncia, não há efeitos imediatos, não pode porque, como sabem, vivemos num Estado de direito e temos que respeitar princípios. Mas isso é completamente diferente de um encobrimento.
De acordo com informação por nós obtida e que cruza alguma informação dispersa, foram encaminhadas 48 denúncias ao Ministério Público. Haverá em investigação 9; arquivadas por prescrição 18; arquivadas por falta de prova 9; arquivadas por outros motivos 12. São também estes os dados da Coordenação Nacional?
Nós ainda não recebemos esses elementos. Conheço-os pela comunicação social, mas ainda não nos foi comunicado de forma oficial. Não são números que me espantem no que toca à prescrição e no que toca também à falta de prova, mas sobretudo à prescrição. Como todos sabem, é um tema que impõe uma revisão urgente.
E quanto a processos canónicos, é possível e desejável ter um relatório também nacional?
É possível um relatório nacional, sim, é possível, mas ainda não tenho.
Mas está-se a trabalhar nesse sentido?
Ainda não foi pedido um relatório nacional dos processos canónicos; um relatório que descreva cada um dos processos. No entanto, eu tenho em minha posse o que se passa em cada diocese e se os processos já têm uma envolvente canónica, se foram remetidos para o Dicastério para a Doutrina da Fé, isso eu tenho conhecimento. Dizer que isso pode ou não ser algo exaustivo, eu prefiro reunir-me primeiro com cada uma das comissões e perceber os trâmites de cada processo.
Perguntávamos também, e sabendo que está a iniciar o trabalho na Coordenação Nacional, como será a conjugação e o trabalho da Coordenação Nacional em articulação com o Grupo Vita?
Eu não estou a iniciar essa articulação, eu herdei uma articulação que já vinha a funcionar bem. A articulação que existia entre a equipa de coordenação e o Grupo Vita era boa, era uma comunicação quase diária. Vamos acompanhando, e por exemplo, tudo o que o Grupo Vita faz, envia um mail com conhecimento para mim, para eu saber o que é que se passa nas restantes comissões. Por isso eu herdei uma situação que já estava a fluir muito bem e continua e continuará, porque aqui não pode nunca haver rivalidade, porque temos sempre que ter o foco que é a vítima e a proteção da vítima.
A Coordenação Nacional será a sucessão do Grupo Vita na estrutura de acolhimento e de denúncia e de acompanhamento das vítimas e dos agressores?
Na Coordenação Nacional não há grande história de estar a acolher vítimas. E vou-lhe dizer que, pelos números que tenho, acolheu uma ou duas vítimas. Agora sim, poderemos reencaminhar. O Grupo Vita faz algo diferente: o objetivo do Grupo Vita é diferente do objetivo da equipa de Coordenação Nacional. A equipa de Coordenação Nacional, recebendo uma denúncia, reencaminha para a Comissão [Diocesana] competente, mas é óbvio que se a vítima preferir não se dirigir à Comissão competente por uma série de razões, claro que sim, a Equipa de Coordenação fará esse acolhimento.
Claro que este é um problema de divulgação também destes centros de acolhimento de denúncias: se é necessário divulgar 20 ou 21 números de telefone ou apenas um… Não sei se está pensado de que forma é que, após o Grupo Vita terminar as suas funções, esta divulgação vai acontecer, para que, diante de uma denúncia, exista essa informação rápida a quem a vítima se possa dirigir?
Uma coisa é a equipa de coordenação, e outra são as comissões diocesanas. Não há um contacto central da equipa de coordenação. Não há, mas há os contactos das comissões diocesanas e aquilo que temos apelado já há muito a esta parte é que as próprias dioceses façam essa comunicação, divulguem os números, só que isto é a nível da diocese ou da arquidiocese. É necessário mais do que isto. É necessário que seja falado, que as comissões diocesanas sejam faladas como é falado o Grupo Vita, não é? Vou-lhe dar o exemplo de Braga. Em Braga, a comissão diocesana tem os seus contactos divulgados semanalmente no jornal, vêm sempre lá, temos mail, temos número de telefone.
Isto é um desafio também para a coordenação?
É verdade. É importante divulgar. Vou-me tornar mais ativa na divulgação.
Defende o fim da prescrição dos crimes de abuso sexual?
O fim da prescrição total não defendo, mas da forma como está não faz sentido nenhum. Limita os direitos.
Está mais do que provado que o timing que está estabelecido não é suficiente para o menor, o menor que seja abusado. Como sabem há um limite temporal que vai até aos 23 anos, não é absoluto o limite temporal, porque esse limite temporal é se a prescrição tiver ocorrido antes, porque se a prescrição ainda não tiver ocorrido, não termina aos 23…. E às vezes há aqui uma confusão que se vai fazendo. Mas sim, é insuficiente porque demora anos – e isso é testado por qualquer pessoa que lide com o tema dos abusos sexuais – para a pessoa assimilar, entender o que lhe aconteceu e sobretudo a ganhar coragem, porque a sociedade olha de canto, a sociedade vai estigmatizando o abusado. E isso acontecia até há pouco tempo. Agora não se verifica tanto, porque eu acho que também a Igreja, ao lançar esta questão, pôs-se a nu da opinião pública, mas também criou um debate na sociedade portuguesa e criou um debate sobre um tema que é importante ser discutido, porque só desta forma é que deixa de ser escondido.
E passando de facto para o problema em toda a sociedade: a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens anunciou que irá estudar os casos de abusos sexuais na infância a partir dos dados do Instituto Nacional de Estatística, avaliando posteriormente uma possibilidade de outro estudo. Na sua opinião esta é uma estratégia acertada?
É, sem dúvida! Só por aqui, ou também por aqui, é que se faz caminho, é que se combate, é que se faz história, ou seja, que se vira a página da história, de uma história negra e se cria uma mais verdadeira e mais justa.
Este projeto decorre do trabalho da Comissão Independente e não acha que está a tardar de facto esse estudo alargado na sociedade portuguesa?
Sem dúvida que está, mas vai ao encontro daquilo que disse há pouco. Esta ação da Igreja, que põe a descoberto muitos danos, obriga a este debate e eu acredito que isto não demore, porque impõe-se; impõe-se a sociedade reagir, impõe-se a sociedade deixar de apontar o dedo e considerar que todos os outros setores estão acima de uma suspeita. Não estão! E a prevenção passa por aqui: a prevenção passa por não apontar o dedo, passa por ter cuidado, instruir, aconselhar, educar…
Que concertação devem ter as várias organizações da sociedade para combater os casos de abusos na infância?
Nessa matéria, penso que esta verdade, esta independência, o escutar a vítima, o não duvidar… Isto tem de ser uma linha que une os diversos grupos da sociedade e que promova a verdade, que promova a prevenção. É preciso formação, é preciso formação a nível da Igreja, mas também é preciso ações de formação destinadas à prevenção, a nível da escola, a nível das famílias. É preciso que haja aqui linhas comuns de atuação.
Mas encontra nesta altura, na sociedade, motivação e persistência para o combate?
Eu encontro motivação para o combate na igreja. O passo que se deu ainda é muito pequeno. Ainda é muito pequeno, não é suficiente, porque as pessoas continuam a considerar que acontece na casa do outro, não acontece na própria casa.
Portanto, falta dar esse passo em toda a sociedade?
Sim, faltará aumentar o passo em toda a sociedade, ter a consciência de que é preciso estar atento, é preciso formar e é preciso prevenir.
Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)